quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O grande incêndio de Londres


Eram 2 da manhã quando um funcionário de Thomas Farriner, o padeiro real, sentiu cheiro de fumaça vindo da cozinha. Acordou a família do patrão, que morava no mesmo endereço, em Pudding Lane, perto da ponte de Londres, e todos saíram pelos telhados. Todos menos a empregada doméstica dos Farriner, que morreu ali mesmo. Foi a primeira vítima fatal do incêndio mais devastador da história da capital inglesa. No final dos 4 dias de fogo, que começou no dia 2 de setembro de 1666, boa parte da cidade tinha se transformado em cinzas.
Durante 4 dias, Londres ardeu. Um terço de sua mancha urbana foi destruída. Um em cada 5 de seus habitantes ficaram desabrigados. No rastro das chamas, viraram cinzas 13,2 mil casas e uma centena de prédios públicos. Foram necessários 50 anos para a reconstrução. Os prejuízos, em valores atuais, são estimados em mais de 1 bilhão de dólares. A catástrofe foi tão anunciada quanto acidental: anos antes do incidente, as autoridades já discutiam os riscos proporcionados por fatores como a preponderância de casas de madeira e de um cenário marcado por ruas estreitas, herança da extensa transformação urbana iniciada com a conquista normanda da Inglaterra, em 1066, e intensificada no século 13, quando a cidade virou capital do reino.
Pequenos e médios incêndios eram uma ocorrência comum. Embora corriqueiro, o fogo não era o maior inimigo dos londrinos: nos dois anos anteriores ao Grande Incêndio, a peste bubônica havia matado 68 mil pessoas na cidade. Mas a preocupação com incêndios estava na cabeça dos moradores: em guerra com Espanha e França, a Inglaterra havia atacado a Holanda, incendiando portos e cidades. Estava no ar a expectativa de retaliação. A cidade, na verdade, tinha as condições ideais de temperatura e pressão naquele momento. "O Grande Incêndio foi uma das chamadas catástrofes perfeitas. Os relatos são de que o clima em Londres estava seco e ao mesmo tempo ventava muito. O pior era que a cidade se preparava para o inverno. Casas, armazéns e lojas estavam abarrotados de produtos como carvão, lenha e gordura", explica Adrian Tinniswood, historiador especializado em urbanismo.
Explosiva e inflamável também era a atmosfera política e religiosa. O país tinha passado por uma guerra civil (1642-1651) e uma traumática experiência republicana de 7 anos. A monarquia só havia sido restaurada em 1658, com a ascensão de Charles 2º, um rei conciliador em relação ao catolicismo em um país que tinha rompido relações com o Vaticano havia mais de um século. "Divergências religiosas tinham criado um forte estereótipo anticatólico desde o século 15, intensificado pelo fato de dois dos inimigos da Inglaterra, Espanha e França, serem potências católicas", afirma Colin Haydon, acadêmico da Universidade de Winchester e estudioso da História religiosa britânica.
Daí não ser surpresa que, entre as muitas teorias que afloraram à época do incêndio, estava a de uma conspiração católica - até 1831 devidamente registrada no monumento construído como marco da tragédia. O obelisco ainda existe e dá nome à estação do metrô de Monument. Nos 4 dias de incêndio, porém, protestantes e católicos fugiram juntos das chamas.
A principal autoridade de Londres, o prefeito Thomas Bloodworth, complicou os esforços de combate ao fogo ao demorar para autorizar a demolição de casas como forma de cortar a propagação do fogo. O prefeito supostamente teria afirmado, tão logo soube da tragédia, que o incêndio não era preocupante e poderia ser extinto se uma mulher urinasse nas chamas. "A hesitação de Bloodworth era motivada por sua preocupação com os custos das demolições, mas compreensível diante do cenário de caos que reinava na cidade", afirma Jacob Field, da Universidade de Cambridge. "Londres tinha 500 mil habitantes e pelo menos 100 mil ficaram desabrigados, para ter uma ideia do pandemônio."
No final do primeiro dia do incêndio, as chamas rumaram para a Torre de Londres, a combinação de prisão e fortificação que contava com um imenso arsenal de pólvora. "Se as chamas tivessem chegado à torre, a cidade explodiria", completa Field. Felizmente, o rei ordenou a Bloodworth que iniciasse o trabalho de demolição para cortar o espaço do fogo.Nem isso parou as chamas, que podiam ser vistas de Oxford, a 64 km da capital. As ruas estavam engarrafadas com carroças abarrotadas com o que os moradores conseguiam salvar. O próprio Charles 2º e seu irmão, o duque de York, comandaram brigadas de combate ao fogo, mas as chamas avançaram para pontos icônicos, como a Catedral de Saint Paul.
A sorte de Londres mudou graças a uma combinação da intensificação da tática de combate ao fogo (imóveis foram explodidos) e uma mudança na direção do vento, que passou a empurrar o fogo para o Rio Tâmisa. Também ajudou o obstáculo representado pela muralha defensiva da cidade. No final do dia 5, o incêndio foi considerado extinto. Além de arrasar 176 hectares, o fogo deixou uma conta salgada, tal como temia o prefeito.
"O fogo destruiu a sede da aduana e o Royal Exchange, o principal centro comercial da cidade, paralisando a economia e o sistema financeiro. Nem Nova York no 11 de Setembro foi tão afetada", afirma Tinniswood. Para complicar, a maioria dos atingidos pelo incêndio pagava aluguel e não tinha condições de arcar com os custos da reconstrução. Perderam tudo - seguros residenciais só seriam criados a partir de 1680. Foi apenas em 1672 que um número significativo de casas ficou novamente em pé.
A maior parte da região destruída pelo fogo hoje faz parte da City, o centro financeiro de Londres, região em que hoje vivem apenas 11 mil pessoas, mas que concentra as instituições financeiras do reino e sozinha contribui com quase 3% do PIB britânico. Pudding Lane, o marco zero do incêndio, ainda existe, embora seja dominada por edifícios de escritórios. Uma placa encomendada pelo Sindicato dos Padeiros de Londres marca o ponto em que ficava a padaria de Thomas Farriner.

HISTÓRICO
A reconstituição dos eventos do Grande Incêndio de Londres é uma tarefa facilitada pela quantidade de documentos resultantes da investigação do governo inglês para apurar as causas da tragédia. O veredicto traçando a origem à padaria de Thomas Farriner ajudou a arrefecer as teorias de conspiração. Mas a grande reportagem do incêndio é obra do burocrata Samuel Pepys e seu diário. No começo, Pepys pensou que se tratava apenas de um fogo corriqueiro. O segundo alerta de um empregado, porém, o fez sair da cama e percorrer a cidade para observar os eventos. Seus relatos falam da fuga de moradores e até do desespero de pombos que não conseguiam voar sobre o calor e a fumaça. Pepys foi a primeira pessoa a avisar o rei Charles 2º sobre o incêndio. Acabou recebendo ordens do monarca para ajudar nos esforços de combate ao fogo, ao mesmo tempo que precisou se preocupar com a segurança de sua família - as chamas avançavam em direção a sua casa. Mandou valores e o diário para a casa de amigos em áreas mais seguras da cidade, mas também cuidou de sua adega, enterrando vinhos e um queijo em seu quintal.
Meia dúzia de corpos
Um dos pontos polêmicos sobre o Grande Incêndio é justamente sua maior curiosidade. Em documentos oficiais, o número de mortos é ridiculamente baixo: 6 pessoas. O dado é baseado em registros de nascimento, privilégio da parcela mais abastada da população no século 17 e que pode ter resultado num grande número de indigentes não contabilizados. Acadêmicos como Gustav Milne, da University College de Londres, apontam para outras questões: as igrejas guardavam os registros de nascimentos e óbitos. Como 87 das 109 igrejas de Londres viraram cinza, foi impossível contabilizar os enterros. Outro argumento: muitas vítimas podem ter sido incineradas. Há também as vítimas indiretas. "Partes das cidade se transformaram em campos de refugiados, o que contribuiu para a proliferação de doenças. E o incêndio deixou muita gente exposta aos rigores do tempo, especialmente no inverno", diz Milne.


A LONDRES QUE NÃO FOI
Existiram vários projetos de reconstrução, mas a cidade foi reerguida tal como era antes

Richard Newcroft
O plano do cartógrafo era dividir a cidade em 55 blocos idênticos, cada um com uma igreja no centro. Esbarrou na impraticabilidade de demolir uma série de imóveis que nem foram tocados pelo Grande Incêndio. Serviu como base para a construção de Filadélfia, nos EUA.
Robert Hooke
Mais conhecido por seus estudos com micróbios, Hooke também tinha mão para a arquitetura. Seu plano para Londres foi um sistema parecido com o de Newcroft e, pelas mesmas razões, arquivado. Um prêmio de consolação foi fazer parte da comissão de arquitetos instituída pelo rei Charles 2º.

John Evelyn
Inspirado pelas tradições italianas, Evelyn imaginou uma Londres com piazzas, jardins e avenidas largas. Seu projeto foi arquivado por pressões comerciais para que Londres voltasse a funcionar o mais rápido possível.

Valentine Knight
Capitão do Exército, imaginou um esquema com duas ruas principais e conjuntos habitacionais. Incluiu um canal que imaginou como possível fonte de renda de pedágio para Charles 2º. Foi preso pelo rei, ofendido com a ideia de fazer caixa com a catástrofe.

Cristopher Wren
O fato de hoje ser conhecido como sir Cristopher sugere sucesso. Mas Wren, apesar de assinar a nova Catedral de Saint Paul e ter se envolvido na construção de 51 igrejas, viu seu plano de uma Londres mais ordeira ser rejeitado. Suas ideias são vistas em Washington, incluindo o Capitólio.


SAIBA MAIS - Livro 
By Permission of Heaven: The Story of the Great Fire of London, Adrian Tinniswood, Pimlico, 2004

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